Trabalho apresentada no 4° período do Curso de Licenciatura em Letras das Faculdades Integradas Campo-Grandenses (FIC) mantidas pela Fundação Educacional Unificada Campograndense (FEUC), na disciplina de Literatura Brasileira Contemporânea ministrada pelo Prof. Me. Erivelto da Silva Reis.
Anna Beatriz do N. Moreira
Louise Nunes da Silva
Mônica Oliveira Vieira
Rúbia da Silva G. Domingos
Thamiris Rodrigues de Sales
O sujeito pós-moderno percebeu a descentralização de sua identidade, e, atuando na sociedade, explora suas várias personalidades, conforme o meio em que vive, abstraindo, muitas vezes inconscientemente, e selecionando o que pode expor. Apesar desse aparente domínio, o sujeito pós-moderno não tem uma percepção próprio do "eu", sente-se fragmentado. A literatura pós-moderna rompe com a estética, com os cânones vistos socialmente. A chave de casa revela cada conflito pela busca da identidade, em meio a fragmentação geral da humanidade-moderna.
Uma maior atenção à apresentação da jovem escritora Tatiana Salem Levy, 36, nascida em Lisboa, Portugal, é fundamental para delinear os traços entre ficção versus realidade em seu romance A Chave de Casa. Nascida em 1979, durante a Ditadura Militar, enquanto seus pais estavam exilados em Portugal (país no qual sua família havia sido expulsa durante a Santa Inquisição, há quase dois séculos, por serem judeus turcos). Tatiana veio para o Brasil ainda bebê, após a instauração da anistia no país. Graduada em Letras pela UFRJ; concluiu mestrado em Estudos Literários e doutorado pela PUC-Rio.
Grande nome da Literatura contemporânea, Tatiana lança seu primeiro romance, A Chave de Casa, em 2007, publicado no Brasil pela Editora Record. A obra rendeu à autora o Prêmio São Paulo de Literatura 2008, na categoria melhor livro de autor estreante e foi também finalista do Prêmio Jabuti 2008.
No romance, a autora faz uso constante da voz da memória, do subconsciente, do subjetivo. Denominado por ela mesma como auto ficção, o narrador autodiegético, conta a história de uma jovem que recebe a chave de casa de seu avô, herança deixada na Turquia. A partir disso as mudanças de tempo entre passado(s) e presente, são constantes. Retrata temas como a morte, busca pela identidade, paradoxo entre dor e prazer etc.
Com principal apoio teórico em Stuart Hall em A Identidade Cultural na Pós-Modernidade, é possível discorrer sobre o nascimento do sujeito pós-moderno, que no final do século XX, dissolve o sujeito iluminista, de concepção centralizada e individual, para recriar as estruturas da sociedade. Passando de sujeito sociológico, que não considerava-se autônomo e auto-suficiente, e sim, valorizava como fator principal da formação do individual, a relação com o outro, o sujeito torna-se pós-moderno, desestabilizando a ideia de sujeito unificado e estável; torna-se fragmentado, composto de várias identidades não resolvidas.
A cultura, em todas as formas de arte, é reflexo desse sujeito. Celebra-se a era móvel, descontínua e descentrada. Criando da realidade à ficção, aspectos infinitos de fragmentações, rupturas e deslocamentos.
Segundo Hall, “As sociedades modernas são, portanto, por definição, sociedades de mudança constante, rápida e permanente." (2006, p. 14)
A Literatura pós-moderna narra essa reflexão sobre as várias identidades do sujeito pós-moderno; não somente, no uso objetivo da escrita/leitura, mas, no subjetivo, no uso de recursos variados da arte literária. A busca por essa identidade é tema de A Chave de Casa, que conta a história de uma jovem de descendência turca, nascida em Portugal e que cresceu no Brasil. A protagonista ultrapassa as fronteiras geográficas ou étnicas, é uma questão de memória, de consciente identitário.
No mundo moderno, as culturas nacionais em que nascemos se contituem em uma das principais fontes de identidade cultural [...] nós efetivamente pensamos nelas como se fossem parte de nossa natureza essencial. (HALL, 2004, p. 47)
A desconstrução dos padrões ocorreram na sociedade, e como já foi dito, refletiu na Literatura. O romance A Chave de casa é uma obra híbrida; assim como o sujeito pós-moderno, ela é descentrada, fragmentada, com rupturas e deslocamento. O romance é diacrônico, e apresenta quatro narrativas intercaladas, inicia-se in medias res, ou seja, pelo meio da história; para esclarecer as situações, faz uso constante de analepses (retrospecção), tornando o monólogo interior foco da narrativa. O pathos da história é a busca pela identidade, que sofre constante influência do antagonista abstrato: o medo da separação . O narrador é, na maior parte, autodiegético, sendo, a personagem principal narrador da sua própria história; em alguns momentos, é também homodiegético/heterodiegético, visto nos trechos: "Eu estava com as passagens nas mãos e tinha poucos dias para arrumar a mala." (LEVY, 2008, p.27) e "Já estava no navio quando sentiu o peito apertado [...]" (LEVY, 2008, p.35)
A personagem principal é densa (redonda), desenvolve-se em meio a seus diversos sentimentos; alternando de personalidade quase que a cada página; criando e desfazendo as expectativas do leitor, como se todo o romance consistisse em clímax. Em sua estrutura há pouca descrição de ambiente e de personagens; fato que dá liberdade à imaginação do leitor. Vitor Manuel dissertou sobre as características próprias de cada romance, diz que os gêneros literários são
[...] como entidades substancialmente existentes, como essências literárias providas de um significado, de dinamismo próprios, não como simples palavras ou categorias arbitrárias [...] pelas teorias revolucionárias de Darwin ao domínio biológico, procura aproximar o gênero literário da espécie biológica." (2004, p.41)
A metaficção, com suas mudanças constantes de tempo e espaço, os traços líricos, o monólogo interior em evidência, as quatro narrativas simultâneas, todo o hibridismo da obra, levam o leitor a desvendar o processo narrativo para montar o quebra cabeça, igualar as cores do cubo mágico que consiste a Literatura pós-moderna.
A narrativa começa com a protagonista paralisada pela depressão, em seu quarto, que é por vezes descrito como um ambiente sujo, com mal cheiro, do qual ela faz parte: “Nas paredes dos quartos apenas musgo. Um cheiro fétido de coisas guardas. [...] Tudo velho [...]. No centro do quarto, a minha cama. [...] No centro da cama, o meu corpo. " (LEVY, 2008, p.41)
No quarto, ela escreve e faz uma auto-análise através da personagem da mãe, já morta, como seu subconsciente, sobre o que teria a levado para a paralisia que se encontrava; em determinados momentos, foi o falecimento da mãe que a deixou imóvel, hora foram os abusos do ex-namorado. Através da memória ela revive os momentos e os medos na busca de sair daquele estado e encontrar sua identidade. Nessa narrativa (o romance possui quatro), a presença do fantástico, através das conversas com a mãe morta, e as reflexões da protagonista, ganham traços líricos, dignos de poemas. Uma auto-análise importante é feita na página 75, com uso de uma parábola, ela questiona até que ponto o sujeito é capaz de ficar imóvel, assistindo sua própria destruição: "O fogo foi se espalhando [...] como de costume, não se mexeram, ficando à espera de ajuda alheia [...] E assim, consumidos pela chama, desapareceram [...] devido a paralisia" (LEVY, 2008, p.75)
A busca pela identidade faz a protagonista mover-se, ainda que figurativamente, já que o romance é repleto do subjetivo, do subentendido. A autora relaciona o passado de seu avô de seus pais, obrigados a deixarem sua nação, por intolerâncias. O avô, não pode casar com a mulher que amava, então, saiu da Turquia; seus pais eram comunistas, e não puderam ficar no Brasil durante a Ditadura, e foram exilados; e os antepassados, que a personagem pouco fala, que por serem judeus-turcos foram expulsos de Portugal durante a inquisição. Essas mudanças geográficas são o ponto de partida para a protagonista sentir que não pertence a lugar nenhum, que não tem identidade. Mora no Brasil, nasceu em Portugal e tem aparência turca. Mas além da sua etnologia, ela busca se conhecer intricadamente; conhecer e deixar a razão dos seus medos.
A partir disso, a personagem começa a dialogar consigo, dando a entender que escreve suas reflexões: "Conto (crio) essa história dos meus antepassados, essa história das imigrações e suas perdas, essa história da chave de casa, da esperança de retornar ao lugar de onde eles saíram” (LEVY, 2008, p.75).
Por vezes, a autora inicia os parágrafos com a mesma frase, ou semelhante. Há um momento em que ela desmente o que havia dito até então: "Essa viagem é uma mentira: nunca sai da minha cama fétida [...]" (LEVY, 2008, p. 106).
Nesse o momento, assim como em vários outros, o leitor se surpreende, fica confuso, não se sabe até que ponto é a realidade/ficção, e em que momento o monólogo interior interfere, desconstruindo tanto a possível realidade, quanto a ficção.
O romance não possui capítulos, entrelaça as narrativas e os pensamentos sobre vários contextos. A autora narra, de forma mais semelhante possível, as lembranças e atitudes humanas; um recurso interessante para isso, foi o da página 197/198, em que a protagonista diz que falará em rompante, sem espaço para o namorado responder, e assim o faz, sem uso nenhum de pontuação; deixando o leitor sentir um pouco da euforia e desespero da protagonista em sair da situação de submissão em que estava. Há páginas com somente uma frase, porém carregadas de significados: "Tenho medo de ser feliz quero ser feliz tenho medo de ser feliz quero ser feliz tenho medo" (LEVY, 2008, p. 158). Nessa frase, a autora não faz uso de pontuação, dando, mais uma vez, interpretação de fluxo de consciência. "Entre nós não havia amor. Havia medo." (LEVY, 2008,p. 176). Nesta última, a autora refere-se ao fato de a protagonista está percebendo o real sentimento que mantinha o relacionando com o namorado. Nas páginas anteriores ela relata todo drama dos abusos sexuais vividos.
"Como é cruel (e bonito) que a vida continue depois de você." (LEVY, 2008, p.182). Nessa frase, ela finda os sentimento de luto pela mãe, a quem acompanhou a doença e sofreu junto sua dor. Encerra a sensação de prisão ao passado dos pais, ao declarar: "A anistia veio em agosto de 79"; e ela, ainda bebê, veio ao Brasil um mês depois da anistia. Remete também, a ideia de continuidade da vida após a ditadura, que foi cruel para quem se opõe à democracia e belo para quem só quer ser livre. E o fim mais figurado, porém mais significativo, é o fato de ela matar o namorado; fica claro que essa morte foi a libertação das lembranças, dos sentimentos. Ela o matou dentro si, pois como afirmou várias vezes, ele já a matava em vida. A ausência de algumas descrições, dá ao leitor a liberdade e aproximação de uma realidade individual. O pouco que é descrito da protagonista, nos mostra a semelhança física com a autora; além da história de vida real, e a narrativa serem semelhantes. Além dessas características, o romance ainda é em primeira pessoa, tornando fácil que real e ficcional se misturem, confundindo, segundo Umberto Eco, citado por Kobs, o leitor ingênuo, que tem a ilusão de que a história narrada é real. Para Verônica Daniel Kobs, em A Metaficção e seus paradoxos: da desconstrução do mundo real/ficcional e das convenções literárias:
O objetivo de fazer um personagem, geralmente protagonista, contar a história confere-lhe status de autor. Além disso, o personagem pode acumular, ainda, a função de de narrador. Se isso ocorre, surge mais um fator de complicação: a narração em primeira pessoa, que gera, na maioria das vezes, a ilusão de que a história narrada é real (2006, p. 4)
Os questionamentos, medos, desejos etc., representados através da protagonista, são sentimentos constantes do ser humano, retratados de forma natural e, arrisco dizer, mais real do que a própria realidade, já que o sujeito moderno faz uso constante das suas várias personalidades, cabíveis a cada situação.
A metaficção é frequente no romance A Chave de Casa. A autora faz uso da própria história e de sua família, com elementos da imaginação. Ela não dá nome à protagonista, o que nos leva a associá-la à própria Tatiana Salem Levy.
Verônica Daniel Kobs afirma que a história passa por diversos filtros antes de ser escrita, sendo "[...] impossível que todos os fatos sejam narrados e que seja conferida a eles a mesma importância que tiveram na realidade, ou seja, são inevitáveis a seleção e os eufemismos ou exageros." (2006, p.12)
Além disso, o narrador retrata através da protagonista, o sujeito pós-moderno, retratado por Stuart Hall (2006): "As identidades culturais não são coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação"
A sensação de ter uma identidade, não é estática, ela é constituída através de interações com outros indivíduos. Nota-se essa percepção, de que é preciso uma auto-análise para encontrar as origens, nas indagações da protagonistas retratada por Tatiana Levy; a chave, representa a possibilidade de abrir as portas do seu interior. Essas reflexões fazem parte do sujeito contemporâneo, que lida com seus medos, com a falta de intolerância; o sujeito que de tão maleável à sociedade, quando se analisa, não encontra uma identidade, mas, várias; vê-se fragmentado.
A obra faz uma crítica às imposições da sociedade. Na narrativa que conta a história do avô da protagonista, a autora fala da impossibilidade de um amor, que o leva a sair da Turquia, e do suicídio da jovem que ficou sofrendo por amor. Na leitura da carta enviada para a personagem que representa o avô da protagonista, está escrito: "Matou-se, meu irmão [...]. A família proibiu o luto, e agora a comunidade usa o exemplo dela para convencer as moças a se casarem com os pretendentes escolhidos pelo pai. [...]".
Invertem-se os valores dos fatos tanto nessa narrativa, quanto na narrativa em que a autora conta os abusos sofridos pela protagonista, no relacionamento violento com o namorado. Há uma crítica subentendida da submissão da mulher. Há também, uma crítica sobre as ditaduras, sobre as consequências, os traumas deixados no psicológico, não só de quem sofreu as torturas na pele, mas de várias gerações.
Podemos ver o sujeito pós-moderno em cada página do livro A Chave de Casa; que revela os medos e desejos comuns ao ser humano, que não são postos à sociedade. Os desejos sexuais que fogem do padrão e a vontade homicida, são duas possíveis faces que os indivíduos não revelam. O romance mostra o que há de mais lírico e dramático, e o que há de mais impuro no ser humano. Leva leitor a cada vez que fecha o livro, ter a companhia da angústia e de diversas reflexões.
A autora deixa clara a importância das escolhas e das atitudes, que modificam e transformam as relações e a si próprio . Fato que Stuart Hall afirma sobre o sujeito pós-moderno: "A identidade torna-se uma "celebração móvel": formada e transformada continuamente em relação às pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas que nos rodeiam.". ( 2006, p.13)
Há, no romance, uma ligação direta com o contemporâneo; tanto na estrutura, quanto na personagem, que busca sua identidade psicologicamente e geograficamente. Stuart (2004) diz que no mundo moderno, as culturas nacionais em que nascemos se constituem como principais formas da nossa identidade. Consequência do meio em que vivemos e das relações que mantemos, formamos a cada dia novos aspectos.
Vê-se também, que a autora faz uma crítica à intolerância, de um modo geral. Ela mostra várias situações que ganham um nível de extremo estresse, que decorre por gerações, por conta das padrões impostas pela sociedade. Nas narrativas do romance com o namorado que, acaba virando drama; a falta de respeito, os abusos sexuais e as marcas no corpo e na alma da protagonista, mostram toda submissão e horror que ela passou. Momentos em que a protagonista conta a desilusão amorosa do avô e as torturas sofridas pela mãe, durante a Ditadura no Brasil. A protagonista relaciona esses fatos ao seu presente, na tentativa de juntar todos os fragmentos de si.
O sujeito pós-moderno surgiu na descentralização do padrão; na formação do "eu" diverso, em movimento e evolução, o que torna difícil de conceituá-lo. Ainda que dividido, em sua mente, o sujeito imagina-se único, resolvido como pessoa. No entanto, sempre existe algo inventado sobre a própria personalidade. Por isso, é tão difícil responder a pergunta: "Quem é você?". Há fatores externos de imediata resposta, mas, quem é seu "eu" interno, o que resulta em suas atitudes ou em sua paralisia?
A identidade está em constante formação. "Psicanaliticamente, nós continuamos buscando a "identidade" e construindo [...] as diferentes partes de nossos "eus" divididos numa unidade [...]." (HALL, 2006, p.39).
Buscamos sempre essa fantasia, a busca por uma definição diante da sociedade; a busca por conhecimento e por conhecer-se e é o que nos motiva.
REFERÊNCIAS
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Tradução de Tomas Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. 11 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
LEVY, Tatiana Salem. A Chave de Casa. 2 ed. São Paulo: Editora Record, 2008.
SILVA, Vitor Manuel de Aguiar. Teoria da Literatura. 8 ed. São Paulo: Almedina, 2004.
KOLB, Verônica Daniel. A Metaficção e Seus Paradoxos: da desconstrução à reconstrução do mundo real/ficcional e das convenções literárias. Curitiba: Scripta Uniandrade, n.4, 2006. Disponível em:
<http://www.criistovaotezza.com.br/critica/trabalhos_acd/metaficcao_veronica_kolb.pdf > Acesso em 14 set. de 2015.