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quinta-feira, 15 de outubro de 2015

"A CHAVE DE CASA" DE TATIANA SALEM LEVY: A(S) IDENTIDADE(S) DO SUJEITO PÓS-MODERNO

Trabalho apresentada no 4° período do Curso de Licenciatura em Letras das Faculdades Integradas Campo-Grandenses (FIC) mantidas pela Fundação Educacional Unificada Campograndense (FEUC), na disciplina de Literatura Brasileira Contemporânea ministrada pelo Prof. Me. Erivelto da Silva Reis. 



Anna Beatriz do N. Moreira
Louise Nunes da Silva
Mônica Oliveira Vieira
Rúbia da Silva G. Domingos
Thamiris Rodrigues de Sales

                        

O sujeito pós-moderno percebeu a descentralização de sua identidade, e, atuando na sociedade, explora suas várias personalidades, conforme o meio em que vive, abstraindo, muitas vezes inconscientemente, e selecionando o que pode expor. Apesar desse aparente domínio, o sujeito pós-moderno não tem uma percepção próprio do "eu", sente-se fragmentado. A literatura pós-moderna rompe com a estética, com os cânones vistos socialmente. A chave de casa revela cada conflito pela busca da identidade, em meio a fragmentação geral da humanidade-moderna.

Uma maior atenção à apresentação da jovem escritora Tatiana Salem Levy, 36, nascida em Lisboa, Portugal, é fundamental para delinear os traços entre ficção versus realidade em seu romance A Chave de Casa. Nascida em 1979, durante a Ditadura Militar, enquanto seus pais estavam exilados em Portugal (país no qual sua família havia sido expulsa durante a Santa Inquisição, há quase dois séculos, por serem judeus turcos). Tatiana veio para o Brasil ainda bebê, após a instauração da anistia no país. Graduada em Letras pela UFRJ; concluiu mestrado em Estudos Literários e doutorado pela PUC-Rio. 

Grande nome da Literatura contemporânea, Tatiana lança seu primeiro romance, A Chave de Casa, em 2007, publicado no Brasil pela Editora Record. A obra rendeu à autora o Prêmio São Paulo de Literatura 2008, na categoria melhor livro de autor estreante e foi também finalista do Prêmio Jabuti 2008.

No romance, a autora faz uso constante da voz da memória, do subconsciente, do subjetivo. Denominado por ela mesma como auto ficção, o narrador autodiegético, conta a história de uma jovem que recebe a chave de casa de seu avô, herança deixada na Turquia. A partir disso as mudanças de tempo entre passado(s) e presente, são constantes. Retrata temas como a morte, busca pela identidade, paradoxo entre dor e prazer etc.

Com principal apoio teórico em Stuart Hall em A Identidade Cultural na Pós-Modernidade, é possível discorrer sobre o nascimento do sujeito pós-moderno, que no final do século XX, dissolve o sujeito iluminista, de concepção centralizada e individual, para recriar as estruturas da sociedade. Passando de sujeito sociológico, que não considerava-se autônomo e auto-suficiente, e sim, valorizava como fator principal da formação do individual, a relação com o outro, o sujeito torna-se pós-moderno, desestabilizando a ideia de sujeito unificado e estável; torna-se fragmentado, composto de várias identidades não resolvidas. 

A cultura, em todas as formas de arte, é reflexo desse sujeito. Celebra-se a era móvel, descontínua e descentrada. Criando da realidade à ficção, aspectos infinitos de fragmentações, rupturas e deslocamentos.

Segundo Hall, “As sociedades modernas são, portanto, por definição, sociedades de mudança constante, rápida e permanente." (2006, p. 14)

A Literatura pós-moderna narra essa reflexão sobre as várias identidades do sujeito pós-moderno; não somente, no uso objetivo da escrita/leitura, mas, no subjetivo, no uso de recursos variados da arte literária. A busca por essa identidade é tema de A Chave de Casa, que conta a história de uma jovem de descendência turca, nascida em Portugal e que cresceu no Brasil. A protagonista ultrapassa as fronteiras geográficas ou étnicas, é uma questão de memória, de consciente identitário.  
No mundo moderno, as culturas nacionais em que nascemos se contituem em uma das principais fontes de identidade cultural [...] nós efetivamente pensamos nelas como se fossem parte de nossa natureza essencial. (HALL, 2004, p. 47)
A desconstrução dos padrões ocorreram na sociedade, e como já foi dito, refletiu na Literatura. O romance A Chave de casa é uma obra híbrida; assim como o sujeito pós-moderno, ela é descentrada, fragmentada, com rupturas e deslocamento. O romance é diacrônico, e apresenta quatro narrativas intercaladas, inicia-se in medias res, ou seja, pelo meio da história; para esclarecer as situações, faz uso constante de analepses (retrospecção), tornando o monólogo interior foco da narrativa. O pathos da história é a busca pela identidade, que sofre constante influência do antagonista abstrato: o medo da separação . O narrador é, na maior parte, autodiegético, sendo, a personagem principal narrador da sua própria história; em alguns momentos, é também homodiegético/heterodiegético, visto nos trechos: "Eu estava com as passagens nas mãos e tinha poucos dias para arrumar a mala." (LEVY, 2008, p.27) e "Já estava no navio quando sentiu o peito apertado [...]" (LEVY, 2008, p.35)

A personagem principal é densa (redonda), desenvolve-se em meio a seus diversos sentimentos; alternando de personalidade quase que a cada página; criando e desfazendo as expectativas do leitor, como se todo o romance consistisse em clímax. Em sua estrutura há pouca descrição de ambiente e de personagens; fato que dá liberdade à imaginação do leitor. Vitor Manuel dissertou sobre as características próprias de cada romance, diz que os gêneros literários são
[...] como entidades substancialmente existentes, como essências   literárias providas de um significado, de dinamismo próprios, não como simples palavras ou categorias arbitrárias [...] pelas teorias revolucionárias de Darwin ao domínio biológico, procura aproximar o gênero literário da espécie biológica." (2004, p.41)
A metaficção, com suas mudanças constantes de tempo e espaço, os traços líricos, o monólogo interior em evidência, as quatro narrativas simultâneas, todo o hibridismo da obra, levam o leitor a desvendar o processo narrativo para montar o quebra cabeça, igualar as cores do cubo mágico que consiste a Literatura pós-moderna.

A narrativa começa com a protagonista paralisada pela depressão, em seu quarto, que é por vezes descrito como um ambiente sujo, com mal cheiro, do qual ela faz parte: “Nas paredes dos quartos apenas musgo. Um cheiro fétido de coisas guardas. [...] Tudo velho [...]. No centro do quarto, a minha cama. [...] No centro da cama, o meu corpo. " (LEVY, 2008, p.41)

No quarto, ela escreve e faz uma auto-análise através da personagem da mãe, já morta, como seu subconsciente, sobre o que teria a levado para a paralisia que se encontrava; em determinados momentos, foi o falecimento da mãe que a deixou imóvel, hora foram os abusos do ex-namorado. Através da memória ela revive os momentos e os medos na busca de sair daquele estado e encontrar sua identidade. Nessa narrativa (o romance possui quatro), a presença do fantástico, através das conversas com a mãe morta, e as reflexões da protagonista, ganham traços líricos, dignos de poemas. Uma auto-análise importante é feita na página 75, com uso de uma parábola, ela questiona até que ponto o sujeito é capaz de ficar imóvel, assistindo sua própria destruição: "O fogo foi se espalhando [...] como de costume, não se mexeram, ficando à espera de ajuda alheia [...] E assim, consumidos pela chama, desapareceram [...] devido a paralisia" (LEVY, 2008, p.75)

A busca pela identidade faz a protagonista mover-se, ainda que figurativamente, já que o romance é repleto do subjetivo, do subentendido. A autora relaciona o passado de seu avô de seus pais, obrigados a deixarem sua nação, por intolerâncias. O avô, não pode casar com a mulher que amava, então, saiu da Turquia; seus pais eram comunistas, e não puderam ficar no Brasil durante a Ditadura, e foram exilados; e os antepassados, que a personagem pouco fala, que por serem judeus-turcos foram expulsos de Portugal durante a inquisição. Essas mudanças geográficas são o ponto de partida para a protagonista sentir que não pertence a lugar nenhum, que não tem identidade. Mora no Brasil, nasceu em Portugal e tem aparência turca. Mas além da sua etnologia, ela busca se conhecer intricadamente; conhecer e deixar a razão dos seus medos.

A partir disso, a personagem começa a dialogar consigo, dando a entender que escreve suas reflexões: "Conto (crio) essa história dos meus antepassados, essa história das imigrações e suas perdas, essa história da chave de casa, da esperança de retornar ao lugar de onde eles saíram” (LEVY, 2008, p.75).

Por vezes, a autora inicia os parágrafos com a mesma frase, ou semelhante. Há um momento em que ela desmente o que havia dito até então: "Essa viagem é uma mentira: nunca sai da minha cama fétida [...]" (LEVY, 2008, p. 106).

Nesse o momento, assim como em vários outros, o leitor se surpreende, fica confuso, não se sabe até que ponto é a realidade/ficção, e em que momento o monólogo interior interfere, desconstruindo tanto a possível realidade, quanto a ficção.

O romance não possui capítulos, entrelaça as narrativas e os pensamentos sobre vários contextos. A autora narra, de forma mais semelhante possível, as lembranças e atitudes humanas; um recurso interessante para isso, foi o da página 197/198, em que a protagonista diz que falará em rompante, sem espaço para o namorado responder, e assim o faz, sem uso nenhum de pontuação; deixando o leitor sentir um pouco da euforia e desespero da protagonista em sair da situação de submissão em que estava. Há páginas com somente uma frase, porém carregadas de significados: "Tenho medo de ser feliz quero ser feliz tenho medo de ser feliz quero ser feliz tenho medo" (LEVY, 2008, p. 158). Nessa frase, a autora não faz uso de pontuação, dando, mais uma vez, interpretação de fluxo de consciência. "Entre nós não havia amor. Havia medo." (LEVY, 2008,p. 176). Nesta última, a autora refere-se ao fato de a protagonista está percebendo o real sentimento que mantinha o relacionando com o namorado. Nas páginas anteriores ela relata todo drama dos abusos sexuais vividos. 

"Como é cruel (e bonito) que a vida continue depois de você." (LEVY, 2008, p.182). Nessa frase, ela finda os sentimento de luto pela mãe, a quem acompanhou a doença e sofreu junto sua dor. Encerra a sensação de prisão ao passado dos pais, ao declarar: "A anistia veio em agosto de 79"; e ela, ainda bebê, veio ao Brasil um mês depois da anistia. Remete também, a ideia de continuidade da vida após a ditadura, que foi cruel para quem se opõe à democracia e belo para quem só quer ser livre. E o fim mais figurado, porém mais significativo, é o fato de ela matar o namorado; fica claro que essa morte foi a libertação das lembranças, dos sentimentos. Ela o matou dentro si, pois como afirmou várias vezes, ele já a matava em vida. A ausência de algumas descrições, dá ao leitor a liberdade e aproximação de uma realidade individual. O pouco que é descrito da protagonista, nos mostra a semelhança física com a autora; além da história de vida real, e a narrativa serem semelhantes. Além dessas características, o romance ainda é em primeira pessoa, tornando fácil que real e ficcional se misturem, confundindo, segundo Umberto Eco, citado por Kobs, o leitor ingênuo, que tem a ilusão de que a história narrada é real. Para Verônica Daniel Kobs, em A Metaficção e seus paradoxos: da desconstrução do mundo real/ficcional e das convenções literárias:
O objetivo de fazer um personagem, geralmente protagonista, contar a história confere-lhe status de autor. Além disso, o personagem pode acumular, ainda, a função de de narrador. Se isso ocorre, surge mais um fator de complicação: a narração em primeira pessoa, que gera, na maioria das vezes, a ilusão de que a história narrada é real (2006, p. 4)
Os questionamentos, medos, desejos etc., representados através da protagonista, são sentimentos constantes do ser humano, retratados de forma natural e, arrisco dizer, mais real do que a própria realidade, já que o sujeito moderno faz uso constante das suas várias personalidades, cabíveis a cada situação.

A metaficção é frequente no romance A Chave de Casa. A autora faz uso da própria história e de sua família, com elementos da imaginação. Ela não dá nome à protagonista, o que nos leva a associá-la à própria Tatiana Salem Levy.

Verônica Daniel Kobs afirma que a história passa por diversos filtros antes de ser escrita, sendo "[...] impossível que todos os fatos sejam narrados e que seja conferida a eles a mesma importância que tiveram na realidade, ou seja, são inevitáveis a seleção e os eufemismos ou exageros." (2006, p.12) 

Além disso, o narrador retrata através da protagonista, o sujeito pós-moderno, retratado por Stuart Hall (2006): "As identidades culturais não são coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação" 

A sensação de ter uma identidade, não é estática, ela é constituída através de interações com outros indivíduos. Nota-se essa percepção, de que é preciso uma auto-análise para encontrar as origens, nas indagações da protagonistas retratada por Tatiana Levy; a chave, representa a possibilidade de abrir as portas do seu interior. Essas reflexões fazem parte do sujeito contemporâneo, que lida com seus medos, com a falta de intolerância; o sujeito que de tão maleável à sociedade, quando se analisa, não encontra uma identidade, mas, várias; vê-se fragmentado.

A obra faz uma crítica às imposições da sociedade. Na narrativa que conta a história do avô da protagonista, a autora fala da impossibilidade de um amor, que o leva a sair da Turquia, e do suicídio da jovem que ficou sofrendo por amor. Na leitura da carta enviada para a personagem que representa o avô da protagonista, está escrito: "Matou-se, meu irmão [...]. A família proibiu o luto, e agora a comunidade usa o exemplo dela para convencer as moças a se casarem com os pretendentes escolhidos pelo pai. [...]".

Invertem-se os valores dos fatos tanto nessa narrativa, quanto na narrativa em que a autora conta os abusos sofridos pela protagonista, no relacionamento violento com o namorado. Há uma crítica subentendida da submissão da mulher. Há também, uma crítica sobre as ditaduras, sobre as consequências, os traumas deixados no psicológico, não só de quem sofreu as torturas na pele, mas de várias gerações.

Podemos ver o sujeito pós-moderno em cada página do livro A Chave de Casa; que revela os medos e desejos comuns ao ser humano, que não são postos à sociedade. Os desejos sexuais que fogem do padrão e a vontade homicida, são duas possíveis faces que os indivíduos não revelam. O romance mostra o que há de mais lírico e dramático, e o que há de mais impuro no ser humano. Leva leitor a cada vez que fecha o livro, ter a companhia da angústia e de diversas reflexões.

A autora deixa clara a importância das escolhas e das atitudes, que modificam e transformam as relações e a si próprio . Fato que Stuart Hall afirma sobre o sujeito pós-moderno: "A identidade torna-se uma "celebração móvel": formada e transformada continuamente em relação às pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas que nos rodeiam.". ( 2006, p.13)

Há, no romance, uma ligação direta com o contemporâneo; tanto na estrutura, quanto na personagem, que busca sua identidade psicologicamente e geograficamente. Stuart (2004) diz que no mundo moderno, as culturas nacionais em que nascemos se constituem como principais formas da nossa identidade. Consequência do meio em que vivemos e das relações que mantemos, formamos a cada dia novos aspectos. 

Vê-se também, que a autora faz uma crítica à intolerância, de um modo geral. Ela mostra várias situações que ganham um nível de extremo estresse, que decorre por gerações, por conta das padrões impostas pela sociedade. Nas narrativas do romance com o namorado que, acaba virando drama; a falta de respeito, os abusos sexuais e as marcas no corpo e na alma da protagonista, mostram toda submissão e horror que ela passou. Momentos em que a protagonista  conta a desilusão amorosa do avô e as torturas sofridas pela mãe, durante a Ditadura no Brasil. A protagonista relaciona esses fatos ao seu presente, na tentativa de juntar todos os fragmentos de si.

O sujeito pós-moderno surgiu na descentralização do padrão; na formação do "eu" diverso, em movimento e evolução, o que torna difícil de conceituá-lo. Ainda que dividido, em sua mente, o sujeito imagina-se único, resolvido como pessoa. No entanto, sempre existe algo inventado sobre a própria personalidade. Por isso, é tão difícil responder a pergunta: "Quem é você?". Há fatores externos de imediata resposta, mas, quem é seu "eu" interno, o que resulta em suas atitudes ou em sua paralisia? 

A identidade está em constante formação. "Psicanaliticamente, nós continuamos buscando a "identidade" e construindo [...] as diferentes partes de nossos "eus" divididos numa unidade [...]." (HALL, 2006, p.39).

Buscamos sempre essa fantasia, a busca por uma definição diante da sociedade; a busca por conhecimento e por conhecer-se e  é o que nos motiva. 


REFERÊNCIAS

HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Tradução de Tomas Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. 11 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

LEVY, Tatiana Salem. A Chave de Casa. 2 ed.  São Paulo: Editora Record, 2008.

SILVA, Vitor Manuel de Aguiar. Teoria da Literatura. 8 ed. São Paulo: Almedina, 2004.

KOLB, Verônica Daniel. A Metaficção e Seus Paradoxos: da desconstrução à  reconstrução do mundo real/ficcional e das convenções literárias. Curitiba: Scripta Uniandrade, n.4, 2006. Disponível em: 
<http://www.criistovaotezza.com.br/critica/trabalhos_acd/metaficcao_veronica_kolb.pdf > Acesso  em 14 set. de 2015.

“O FILHO ETERNO” DE CRISTÓVÃO TEZZA: ASPECTOS E QUESTÕES DA LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA

Trabalho apresentado no 4° período do Curso de Licenciatura em Letras das Faculdades Integradas Campo-Grandenses (FIC) mantidas pela Fundação Educacional Unificada Campograndense (FEUC), na disciplina de Literatura Brasileira Contemporânea ministrada pelo Prof. Me. Erivelto da Silva Reis.



Adriane Lucia de Oliveira
Anne Rodrigues dos Santos
Edilene Andrade lopes de Oliveira
Lybia Santos de Oliveira
Sandra Helena Santos Cadilhe


A verdade é que nós somos sempre não uma mas várias pessoas e deveria ser norma que a nossa assinatura acabasse sempre por não conferir. Todos nós convivemos com diversos eus, diversas pessoas reclamando a nossa identidade. O segredo é permitir que as escolhas que a vida nos impõe não nos obriguem a matar a nossa diversidade interior. O melhor nesta vida é poder escolher, mas o mais triste é ter mesmo que escolher.
Mia Couto

Através da literatura é possível compreender a Si mesmo, o Outro e o mundo que nos rodeia. Prova disso é O Filho eterno de Cristóvão Tezza que nos apresenta um amontoado de emoções e questionamentos pessoais e da sociedade que fazemos parte. 

Tal autor, é doutor pela Universidade de São Paulo (USP), ex-professor na área de Língua Portuguesa das Universidades Federais de Santa Catarina e do Paraná (UFSC e UFPR) e, hoje, escritor consagrado da Literatura Brasileira. Publica, em 2007, pela editora Record, o romance O Filho Eterno, obra que, a partir de uma narração heterodiegética, perpassa por passado e presente e, mencionando também o futuro, relata os pensamentos mais intimistas de um personagem protagonista sem nome, escritor, que se torna pai de uma criança portadora da Síndrome de Down. A história se passa nos anos 80, época em que tal síndrome era conhecida como mongolismo e escassos eram os recursos oferecidos na área de saúde e integração social. Retrata assim, a intimidade do protagonista, na qual se sente fracassado em suas conquistas de vida, e isso é intensificado pelo constrangimento em ter um filho que não é "normal". Dessa maneira, a vida desse pai é transformada pela busca de tratamento, adaptação e, também, avanços do filho. Durante esse processo, o narrador, onisciente, aponta os pensamentos e comportamentos contraditórios do pai bem como as experiências de Felipe, e por meio de uma história baseada na relação de apenas dois personagens centrais, concentra as principais características da sociedade contemporânea. 

A partir da segunda metade do século XX, a sociedade moderna sofreu diversas mudanças estruturais - política, economia, relações pessoais, cultura, entre outros – culminando na efetiva transformação do processo de construção de identidades dos sujeitos. Stuart Hall discorre sobre a evolução identitária no decurso do tempo a partir de três concepções: o sujeito do Iluminismo, sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno. A concepção do sujeito do Iluminismo era baseada na identidade centrada e individualista; o sujeito sociológico já se preocupava em alinhar os sentimentos ao lugar em que ocupava no mundo social e cultural, já não era mais o centro; o sujeito pós-moderno, reflexo das transformações sociais desde a segunda metade do século XX, tornou-se fragmentado, composto de várias identidades,
[...] assume identidades em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas [...]. (HALL, 2006, p.13).
Ou seja, como a sociedade não possui mais um valor central, os indivíduos passaram a se comportar de maneira semelhante, assumindo, de acordo com cada contexto, uma posição diferente.

O filho eterno, publicado em 2007, refere-se a uma história que se passa nos anos 80. Quando Felipe – personagem portadora da Síndrome de Down – nasce, o termo “anormal”, utilizado na época, não causava desconforto e aversão. Atualmente, e desde o ano de publicação da ficção, a sociedade já compartilha da ideia do "politicamente correto / incorreto", assim, esse mesmo termo, tão tratado e repetido na obra, impacta, pois não pertence à ética social vigente. Entende-se que o objetivo aqui é, justamente, retratar o que tantos ainda pensam, porém não dizem, não externalizam, corroborando então com as multifaces identitárias do sujeito pós-moderno, quando o comportamento se opõe ao pensamento.

O romance apresenta uma constante relação da vida com o teatro. Na maternidade, enquanto aguardava sua esposa dar à luz, o narrador revela que o personagem buscava as atitudes apropriadas para a ocasião no trecho que diz “Ele queria criar a solenidade daquele momento [...] Como diretor de uma peça de teatro indicando ao ator os pontos da cena: sinta-se assim; mova-se até ali; sorria.” (TEZZA, 2007, p. 13). Não era uma atitude natural, mas era necessário que ele agisse daquela forma tida como tradicional. Idealizava até os movimentos que precisavam ocorrer em tal momento. Era esse o comportamento esperado, são regras que a sociedade está submetida. A obra nos chama a atenção para as ações que a sociedade espera, como em um teatro onde todos os indivíduos representam. “Teatro e vida são a mesma coisa” (TEZZA, 2007, p.162), ironiza o narrador. 

O personagem cria uma expectativa em relação ao filho que iria nascer – “O filho será a prova definitiva das minhas qualidades” (TEZZA, 2007, p.15) –, mas a realidade da Síndrome de Down o surpreende e se vê perdido entre seus próprios pensamentos e atitudes. A forma como ele reage ao nascimento de Felipe é verossímil porque é possível este tipo de comportamento e pensamentos fora da ficção, e o personagem será o ponto em destaque da análise da sociedade em geral. 
A normalidade. O que dizer aos outros, quando encontra com eles? Sim, nasceu meu filho. Sim, está tudo bem. Quer dizer, ele é mongoloide. Não – essa palavra é pesada demais. [...] A maneira mais delicada de dizer é: Sim, um pequeno problema. Ele tem mongolismo [...]. (TEZZA, 2007, p.42)
Observa-se nesse trecho que o personagem se prepara mentalmente para as melhores respostas e comportamentos, independente do que ele pensa de fato. Preocupado com o que os outros pensariam.

Nesse panorama, constrói-se na literatura a Fragmentação narrativa cuja função é representar essa identidade fragmentada.
[...] a ótica de um narrador onisciente, a visão tendenciosa de um narrador-personagem, os ângulos de um narrador camaleão, as perspectivas de personagens-narradores, e ainda, o esmaecimento da mesma são índicos de uma fragmentação literária que nos intriga e desafia nossa compreensão de mundo e do aspecto humano no ato de cada leitura. (ANDRADE, 2007, p.125).
O narrador heterodiegético questiona as regras da sociedade, confrontando com os pensamentos do personagem trazendo um choque entre o que se é e o que se mostra ser. Nesse contexto, é possível verificar que o autor chama a atenção para uma sociedade artificial, robotizada e mecanizada. Destaca-se nessa concepção, o momento em que seu filho, após diagnosticado com a síndrome de Down, é submetido a um processo de estímulos neurológicos com o objetivo de atenuar as diferenças comportamentais e, dessa forma, crescer repetindo os padrões estéticos tidos como normais. A clínica que se propõe a ensinar os exercícios que estimulam os movimentos de braços, pernas e cabeça, a fim de fazer com que crianças deficientes copiem os movimentos padrões da normalidade neurológica humana, é vista pelo pai como uma linha de produção. “É preciso compensar a falta da natureza; consertar o defeito de origem.” (TEZZA, 2007, p.96).

Através de um fluxo de consciência, o narrador volta no tempo quando, em 1975, o protagonista encontra-se na Alemanha trabalhando na lavanderia de um hospital. “Tempos modernos, ele lembra, estetizando a vida – Chaplin na linha de produção.” (TEZZA, 2007, p.98). Nessa mudança temporal percebe-se que o personagem sente-se novamente em uma linha de produção, mas agora, com seu próprio filho. “Ele já fez isso, um trabalho semelhante ao do balcão de roupas” (TEZZA, 2007, p.108).

Em O filho eterno é possível verificar diversas mudanças no tempo e, em uma leitura desatenta, o leitor poderia confundir o momento presente com um relato passado.
Durante algum tempo, nutriu-se da ilusão da normalidade; ele ainda alimenta essa miragem [...] É preciso romper a casca do medo, entretanto.Rompimento. Os raros momentos em que a vida se esgarça e se rompe [...] Aos cinco ou seis anos, o primeiro deles: recusou-se a ir buscar no vizinho três pés de alface, desafiando o pai [...] (TEZZA, 2007, p. 119)
Nesse trecho há uma mudança tão abrupta que, a princípio, pode-se deduzir que o narrador está falando do Felipe nos dois parágrafos, quando na verdade o narrador fala de Felipe no primeiro, e do pai no segundo. 
[...] um texto de ficção cujo recurso memória/digressão é trabalhado ao extremo, através das múltiplas perspectivas narrativas, pelas quais as histórias de frustração e rancor são contadas. Tal artifício estético/literário resulta numa lídima fragmentação da obra, da linguagem e dos personagens descentrados. Também evidencia a importância da materialidade discursiva e das muitas óticas para estabelecermos um elo teórico entre a fragmentação da obra em si, e a presença sintomática da linguagem. (ANDRADE, 2007, p.128)
A ausência de linearidade é observada em diversos momentos da narrativa, Cristóvão Tezza se apropria de uma das características mais intrigantes da literatura contemporânea, causando instabilidade e inconstância no leitor que é arremessado para situações e tempos diferentes, ás vezes, até no mesmo parágrafo. Ou seja, é uma estrutura que se opõe a tradicional narrativa, provoca o leitor. Tratando-se de uma metalinguagem mais intensa que se torna característica da literatura contemporânea. 

Ressalta-se a coincidência da biografia do autor com características do personagem protagonista. Um brasileiro, que morou na Alemanha e em Portugal, onde a Revolução dos Cravos frustra seus planos educacionais, se torna escritor e autor de obras que existem com efeito, cuja autoria é do próprio Tezza. Tal recurso configura a metaficção culminada do questionamento do leitor referente à linha tênue existente entre ficção e realidade. O que caracteriza também o hibridismo de gêneros, romance e autobiografia.

O narrador é considerado “onisciente intruso”, ou seja, aquele que tudo sabe, inclusive os pensamentos, e emite sua opinião sobre o personagem. No entanto, nessa obra, é possível notar a instabilidade deste narrador. Ele critica, mas também compartilha dos sentimentos do personagem, podendo-se confundir em alguns momentos com o próprio.  No trecho “Em poucos minutos – ele não pensou nisso, mas era o que estava acontecendo – aquela criança horrível já ocupava todos os poros da sua vida.” (TEZZA, 2007, p.35), nota-se que o personagem não pensou aquilo, mas de certa forma, o narrador tinha a mesma opinião. 

No trecho, "Ele é alguém delicado demais, ou ignorante demais, ou demasiado estúpido, ou irremediavelmente imaturo para a realidade simples. O primeiro pensamento é mesquinho: o caso do meu filho é diferente [...].". (TEZZA, 20017, p.85), nota-se que o narrador tem sua opinião formada quanto ao personagem e ainda qualifica seu pensamento. Dessa forma, influencia o leitor a pensar do mesmo modo que ele, conduzindo a narrativa de acordo com o seu objetivo. Provoca reflexão comportamental, pois retrata a realidade, não trabalha a utopia de um mundo perfeito, mas mostra o ser humano como realmente é, instável e cheio de defeitos.

Um exemplo disso é quando o pai fotografa seu filho procurando seus melhores ângulos, aqueles que disfarçam seus defeitos – aos olhos do pai – e assim, se pareça com uma criança normal. Logo em seguida, justifica-se dizendo que todas as pessoas procuram os seus melhores ângulos. Nesse aspecto, percebe-se a presença de comportamento humano no que diz a sempre ter justificativas aceitáveis ao próprio erro. Ou ao que o próprio se condena ou se cobra. Sempre há motivos para justificar o que considera falha, na busca de amenizar suas irresponsabilidades.

Nesse contexto, percebe-se ainda a presença amoralidade, pois enfatiza nomenclaturas que não pertencem a atual ética social, mas que outrora eram naturais – normal/anormal, mongolóide.  Assim como pensamentos intrínsecos ao ser humano, uma vez que mascarados, opõem-se ao seu comportamento. Ora, o pai deseja abandonar a família em alguns momentos, e até mesmo espera, por um tempo, que a morte do filho o liberte daquela situação.

Apesar de pós-modernismo não haver juízo entre certo e errado, há regras éticas estabelecidas socialmente. Dessa forma, a obra demonstra a própria realidade, entre o que se pensa e de como se comporta.

O romance tem a referência histórica das duas últimas décadas do século XX e início do século XXI, percorrendo pelos anos finais da ditadura militar brasileira e início da democracia. E, através desse contexto, a narrativa segue fazendo algumas denúncias.

Felipe frequentava uma creche tradicional, mas depois de alguns anos a diretora chama o pai para uma conversa. "Primeiro os subterfúgios – sim, ele não está se adaptando, sim, agora começa uma nova fase, a alfabetização, sim, é claro, ele é ótimo, mas – veja – as outras crianças. Então. A agitação dele, sabe [...]" (TEZZA, 2007, p.156). Nessa situação, a diretora representa a dificuldade que a sociedade tem em aceitar e lidar com as diferenças. 

Percebe-se, em outro momento, a denúncia sobre o benefício que os governos tiram da pobreza no trecho em que diz "[...] tudo que é pobre é escancaradamente visível, está em toda parte de mão estendida [...] Governos inteiros se fazem por essas mãos estendidas e por mais nada.". (TEZZA, 2007, p.82).

No Hospital das Clínicas, enquanto aguardava um especialista em genética para consultar seu filho, nota-se a denúncia das diferenças entre classes sociais descrevendo os pobres como "gados" que seguem sem entender a espera de uma elite branca que possa trazer conforto e cura. São votos em potencial; escravos do sistema.
[...] aquela pobreza suja, estropiada, cristã, os molambentos em fila, a desgraça imemorial em busca de esmola, aqui e ali as ambulâncias de prefeituras do interior trazendo votos potenciais que se arrastam em muletas, o gado balançando a cabeça e contemplando no balcão uma cerca incompreensível e instransponível, cuidada por outra espécie de gado que carimba papeis e entrega senhas; o sétimo céu é algum corredor que dê em outra sala onde um apóstolo de branco estenderá a mão limpa e clara sobre as cabeças para promover a cura milagrosa [...]. (TEZZA, 2007, p.57).  
O personagem se inclui como escravo desse sistema opressor, e atribui ao acaso. O filho com Síndrome de Down tirou dele a liberdade utópica. Agora, ele esperava "[...] normalizar sua vida (uma mulher, um salário, estudos regulares, um futuro, livros, enfim), recebe de Deus um filho errado, não para salvá-lo, mas para mantê-lo escravo, que é o seu lugar [...]". (TEZZA, 2007, p. 93).

No momento em que Felipe some, e a polícia o encontra, notamos mais uma denúncia social que diz respeito à corrupção. Os policiais levam a criança para casa e o pai, em forma de agradecimento, faz uma contribuição financeira pelo serviço prestado. Em seguida, o personagem sofre um conflito interno, e, apesar de se justificar, sua própria consciência rebate, denotando culpa por disseminar uma cultura onde a corrupção é banal. "[...] você simplesmente abriu mais uma porta da corrupção. Não reclame daqui a alguns anos quando eles vierem cobrar a conta. Isso é cultura [...]". (TEZZA, 2007, p.181). Assim, a obra expressa a culpa do povo que não só permite, como alimenta essa teia de corrupção.

Esse comportamento é típico dos personagens pós-modernistas, pois como diz Harvey, “[...] as personagens pós-modernas com frequência parecem confusas acerca do mundo em que estão e de como deveriam agir em relação a ele [...]”. (2007, p.46).

Ainda percebemos, também, o retrato do oprimido que se torna opressor, presente em nossa sociedade. Em determinado trecho, uma criança pedinte de dinheiro, também vítima social, atemoriza-se ao ver Felipe e corre. Situação, que provavelmente possa ter sofrido, por se tratar de uma criança pobre e de rua. E, apesar de presenciar tal ato preconceituoso, em outro momento, é o pai quem não permite que Felipe toque na mesma criança para que não se “suje”, isso, logo após de ver o filho ser convidado a se retirar da escola em que estudava por não se tratar de uma pessoa normal. É um círculo vicioso, o oprimido também oprime. Denota o comportamento humano de considerar-se melhor que o próximo, pois seu filho podia até não ser “normal”, mas pobre e sujo, criança de rua, ele não era.

Cristóvão Tezza, em O filho eterno, reproduz todas as mazelas sociais e humanas em um reduzido número de personagens, fazendo uso de recursos linguísticos e estruturais do pós-modernismo.

A Literatura é o registro da vida, da sociedade, cultura e comportamento. Através dessa obra reconhecemos a contemporaneidade presente, pois o autor a descreve, através de personagens como o pai e o filho.

O pai, produto do meio, frustrado com sua profissão e vida é dono dos pensamentos causadores de perplexidade. Compara-se ao filho em diversos momentos. Se Felipe apresenta-se no teatro, o pai lembra seus tempos como ator. Se Felipe torna-se um pintor, o pai remete a um tempo passado semelhante. Se Felipe se interessa por mulheres, o pai lembra sua primeira paixão, e assim por diante. Aprende a amar e a proteger seu filho, de forma a não considerar ninguém mais capaz para isso. No entanto, não se torna um herói, continua ser humano, com receios, vergonhas e inseguranças, apenas se adapta a vida.

Já o personagem Felipe, o "filho eterno", a criança "anormal", possui determinada inocência, no entanto, representa uma releitura do comportamento humano. 

Ora, Felipe imita tudo, faz da vida um teatro particular. Talvez, tal personagem compreenda muito bem o comportamento das pessoas "normais", pois interpretam o tempo todo. O filho mimetiza o que a televisão lhe ensina, o que condiz, também, com a sociedade alienada que obedece aos programas televisivos.

Esse romance pós-moderno, utilizando-se de todos os recursos descritos, nos submete a inúmeras reflexões. O pai se compara ao filho, o autor ao personagem, levando o leitor a comparar-se também com tudo isso, com tudo que ali é exposto. O filho eterno, digamos assim, fotografa um ângulo de nós mesmos que não queremos mostrar.  O filho eterno nos transforma em literatura.


REFERÊNCIAS

ANDRADE, Maria Luzia Oliveira. A fragmentação do texto literário: um artifício da memória? Interdisciplinar: Revistas de estudos em Língua e Literatura, Sergipe, v. 4, n. 4 - p. 122-131 - Jul/Dez de 2007.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. 11 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

HARVEY, David. Condição pós-moderna. 16 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2007.

KOBS, Verônica Daniel. A metaficção e seus paradoxos: da desconstrução à reconstrução do mundo real/ficcional e das convenções literárias. Curitiba: Scripta Uniandrade, n.4, 2006.
Disponível em: < http://www.cristovaotezza.com.br/critica/trabalhos_acd/metaficcao_veronica_kolb.pdf > Acesso em 11/09/2015 às 14h e 13m.

TEZZA, Cristóvão. O filho eterno. Rio de Janeiro: Record, 2007.

ASPECTOS PÓS-MODERNOS NA LITERATURA BRASILEIRA ATRAVÉS DA OBRA "LEITE DERRAMADO" DE CHICO BUARQUE

Resenha apresentada no 4° período do Curso de Licenciatura em Letras das Faculdades Integradas Campo-Grandenses (FIC) mantidas pela Fundação Educacional Unificada Campograndense (FEUC), na disciplina de Literatura Brasileira Contemporânea ministrada pelo Prof. Me. Erivelto da Silva Reis. 

Adriane Lucia de Oliveira 
Lybia S. de Oliveira



Francisco Buarque de Hollanda, músico, compositor, dramaturgo e escritor brasileiro, nascido em 19 de junho de 1944 na cidade do Rio de Janeiro, é considerado um artista completo. Sua obra literária, assim como a música, é elogiada e apreciada pela crítica brasileira, algumas delas, inclusive, foram premiadas e adaptadas ao cinema. Chico Buarque é o quarto dos sete filhos do historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Hollanda e da pianista Maria Amélia Cesário Alvim. Morou e estudou na Itália durante alguns anos e tinha sua casa frequentada por grandes personalidades brasileiras. Publica suas primeiras crônicas aos 17 anos no jornal do colégio Santa Cruz, onde estudava. Em 1964 ingressa na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo (FAU), mas abandona o curso por conta do clima de repressão após o golpe militar. Em 1966 ocorre seu primeiro embate com a censura. Logo após a decretação do Ato Institucional n°5, em 13 de dezembro de 1968, é detido e levado ao Ministério do Exército para esclarecimentos sobre sua participação na “passeata dos cem mil” e sobre as cenas da peça Roda viva, que foram consideradas subversivas. Em janeiro de 1969 deixa o país para um autoexílio na Itália. Retorna em 1970 e, ao lado de seu pai, participa do Conselho do Centro Brasil Democrático (Cebrade), uma organização de intelectuais comprometidos contra a ditadura, e isso lhe valeu o rótulo de comunista. Em 1991 lança seu primeiro romance, Estorvo, pela Companhia das Letras, vendido para sete países e loureado com o Prêmio Jabuti de Literatura. Em 1995 é lançado o seu segundo romance, Benjamim, oito anos mais tarde publica seu terceiro romance, BUDAPESTE, que se torna Best-Seller e traduzido para mais de seis idiomas. Em 2009, publica pela Companhia das Letras o seu quarto romance, Leite derramado, cujo sucesso nas vendas e excelente aceitação da crítica resultaram no Prêmio Jabuti, como livro do ano em 2010, e já se encontra autorizada, pela Agência Nacional do Cinema (ANCINE), a sua adaptação aos cinemas.

Leite derramado é construído através de uma narração autodiegética, na qual, Eulálio Montenegro D’Assumpção, centenário e ao leito de um hospital, narra sua vida, pensamentos e histórias. Descendente de família europeia, que desembarcou no Brasil junto com a Coroa Portuguesa, nos revela um panorama histórico-social que perpassa os dois últimos séculos em apenas 195 páginas, divididas em 23 capítulos.

A narrativa inicia-se com o protagonista em um leito de hospital jurando casar-se com a enfermeira que lhe assiste. E é nesse leito, sob efeito de muitas dores e reações aos remédios – devido a uma fratura do fêmur, escaras e enfisema – bem como sua memória fraca, que Eulálio narra, entre memórias e delírios, de forma fragmentada, os acontecimentos de sua vida e de seus antepassados, dirigindo-se a diferentes personagens - enfermeira, filha, a mãe (já morta), outros pacientes e a quem quisesse ouvir.

Eulálio, ao que tudo indica, nasceu em junho de 1907, o enredo se dá, no entanto, em 2007, quando o personagem está completando cem anos de vida, mas a história faz menção aos tantos Eulálios de sua tradicional família, que outrora influente e abastada, passa por transformações morais e econômicas. Em ordem cronológica, tetravô Dom Eulálio – poderoso comerciante e conselheiro de Marques de Pombal; trisavô general; bisavô barão dos arcos; avô “figurão do Império, grão-maçom e abolicionista radical”; pai senador da República. Assim, nosso personagem protagonista segue forçando a memória para buscar sua identidade, corroída pelo tempo e pelas mudanças socioeconômicas do país, até chegar em seu tataraneto, traficante de drogas, também chamado Eulálio. É como uma espécie de eco que de tanto se repetir torna-se mais fraco e totalmente disperso no universo.

O pai de Eulálio, embora tivesse uma posição social invejável, vivia uma vida promíscua, era consumidor de cocaína e, supostamente, fora assassinado pelo marido de sua amante; a mãe, uma senhora conservadora, preconceituosa e tradicional. Ambos representavam os aspectos e costumes de uma época. Durante a narrativa é possível identificar diversos acontecimentos históricos e o comportamento da elite diante desse cenário. O narrador faz menção à rainha louca, Dom Pedro II, Marques de Pombal, abolicionismo, Belle Epóque, as duas Grandes Guerras, ditadura militar etc. Nota-se o contraste das gerações até nas mínimas descrições, como, por exemplo, quando se refere ao sofrimento de seus antepassados que suavam bastante embaixo de tanta roupa e seu pai que as mandava engomar na Europa, até a personagem Kim, namorada de seu tataraneto, que mostrava um piercing no umbigo e exibia uma tatuagem escrita “Jesus Cristo” no “rego da sua bela bunda”. Do conservadorismo à amoralidade comportamental. A obra corrobora assim com as transformações éticas sociais. Provoca o leitor a refletir mais de cem anos de história do país.

O enredo é direcionado em torno de sua grande paixão, Matilde, que o abandonou deixando-o sozinho com a filha, Maria Eulália, ainda bem pequena. Eulálio, homem orgulhoso, posto acima na estratificação social, casa-se com Matilde, uma mulher que embora lhe provocasse os mais fortes desejos, mantinha comportamentos contrastantes ao que se esperava de uma mulher de “classe”, tais aspectos o envergonhava, seu francês medíocre, a vontade de ficar na cozinha, o gosto por estilos musicais como samba e maxixe, o assobiar, eram comportamentos inadequados para uma mulher diante da sociedade da época. Mulher que sua mãe não aprovava, pois “[...] era a mais moreninha das congregadas marianas que cantaram na missa [...].” (p.20), perguntando-o ainda se a moça não tinha “cheiro de corpo”, uma vez que tinha a pele “quase castanha”. Intensifica a antipatia quando a moça lhe dá uma neta mulher, pois a tradição familiar consistia em filhos homens unigênitos.

O narrador carrega, desde o desaparecimento de Matilde, muitas dúvidas e envolve o leitor em um grande suspense. Durante a narrativa, despertam-se diversas possibilidades e versões sobre esse fato, algumas são contadas para a filha, mas desmentidas sempre após um novo boato que a menina, desde pequena, escutava na escola; outras, nos são sugeridas através do discurso. Morreu após o parto, em um acidente na Rio-Petrópolis, afogamento, tuberculose, suicídio, fugiu com seu amigo Francês, fugiu com o médico (amigo da família) etc. Permanece a dúvida até o final da obra, embora tivesse aparentemente se esclarecido através de uma carta do médico revelando a sua doença, mas Eulálio não lê. O leitor é conduzido a tirar suas próprias conclusões diante do mistério.

Com isso, nota-se a intertextualidade presente em referência a Dom Casmurro de Machado de Assis. Eulálio possui um ciúme doentio como o de Bentinho, ambos descrevem doses de dissimulação características de suas mulheres, ambos desconfiam do romance entre suas esposas e homens mais chegados, e o mistério da traição permanece além do fim da história. Capitu traiu Bentinho? Matilde traiu Eulálio?

O ciúme de Eulálio pode ser visto e interpretado como um grande reflexo do preconceito, machismo e imoralidade presentes em si mesmo. Era difícil para ele admitir Matilde como negra e, por isso, cultivava uma espécie de desejo similar aos dos senhores que mantinham escravas para saciar seus desejos sexuais. No trecho em que menciona Balbino, filho de um escravo e amigo de infância, afirma que ele tinha a “índole prestativa” e para tanto lhe pedia favores somente para agradá-lo. Nesse período, desejou se relacionar sexualmente com ele – “mesmo sem motivos”, segundo o próprio – mas subentende-se que as atitudes de submissão lhe davam gosto o suficiente para isso. Segundo o narrador, esse desejo só não fora concretizado porque conheceu Matilde. Logo em seguida, se justifica dizendo que não tem preconceito de cor e, no mesmo parágrafo, a descreve como a “mais moreninha das congregadas marianas”. A índole prestativa de Matilde, assim como a de Balbino, alimentava o desejo de Eulálio pela submissão de negros em posição de escravos, isso fica bem explícito quando ele a espremia contra a parede com toda a sua força, prendia seus punhos, até que ouvisse “eu vou, Eulálio”. Essa é uma das grandes críticas presente em Leite derramado, pois apesar de serem mascarados, é possível enxergar a disseminação de comportamentos e pensamentos preconceituosos principalmente contra a mulher negra, que ainda é vista como objeto de desejo, escrava sexual e “cor do pecado”.

O preconceito do personagem ainda pode ser destacado em vários trechos do romance. Quando seu bisneto começou a crescer e seus traços afros foram se tornando mais evidentes, Eulálio começou a se perturbar porque tinha “a sensação de conhecer sua cara de algum lugar”. Ao vasculhar a memória não lembrava de nenhum outro negro em seu convívio, “não tinha muita gente da raça em sua relação”, com exceção de Balbino e um ou outro criado. Ele não reconhecera os traços de Matilde porque não queria enxergar a sua esposa como negra, não admitia. E para justificar o “nariz de batata” e cabelos crespos do bisneto, preferiu supor que havia puxado a mãe, que ele não conhecia, alegando que o neto não havia feito uma boa escolha: “[...] eu não podia esperar um neto comunista que se juntasse com uma moça de pedigree.” (p.149). A palavra “pedigree” remete a uma raça superior, de porte, com linhagem, portanto, apesar de dizer que não tinha preconceitos, seu discurso prova a sua opinião quanto ao negro ser inferior. Em uma ocasião, Eulálio fica horrorizado quando escuta uma “menininha muito branquinha”, durante momentos de intimidade, chamar seu bisneto de negão, e no dia seguinte é possível notar em seu discurso uma necessidade de defender e “limpar” a honra da família, ao dizer a ela: “o negão aí é descendente de dom Eulálio Penalva d’Assumpção, conselheiro de Marques de Pombal.” (p.150).

Além do racial destacam-se outros tipos de preconceitos arraigados e disseminados na atualidade, como, por exemplo, associar a imagem de um padre a um sujeito homossexual, no trecho em que diz “padreco meio bicha”; e, ao apresentar o cenário de tantos nordestinos que vieram trabalhar nas capitais, inclusive como porteiros na zona sul do Rio de Janeiro, ao se referir a um desses empregados como “cabeça-chata” e pensar que o mesmo “talvez nunca tivesse visto um senhor de colete e paletó tweed.” (p.151).

Eulálio representa uma classe de conservadores radicais decadentes que cristalizaram valores ultrapassados e, por que não, desumanos, e que insistem em ecoar seus discursos preconceituosos e ofensivos.

O ciúme, ou melhor, a possessividade de Eulálio, evolui durante toda a narrativa. As roupas de Matilde, seus modos, suas idas à praia, as visitas que recebia enquanto ele trabalhava, tudo incomodava ao ponto de fantasiar cenas de adultério, resultando na proibição de determinadas roupas e passeios. Quando Matilde se tornou mãe, e logo em seguida deixou de amamentar, o narrador vira vítima de pensamentos imorais e em nenhum momento se preocupa e pergunta o que está acontecendo com ela, mas prefere se calar, observar e julgar conforme sua própria moral – ou falta dela. A sua desconfiança se tornou ainda mais concreta quando a ama de leite lhe diz que “Se o leite estanca assim de supetão [...] é porque a mãe perdeu um ente querido, ou padeceu grande decepção amorosa.” (p.134).

Quando Matilde estava a chorar baixinho, Eulálio, que estava há semanas sem se deitar com ela, imaginou ouvir a mesma voz de quando praticavam sexo, talvez, a mesma voz frágil e submissa que tanto o excitava. E, por isso, fantasiou que Matilde estava com outro homem. Porém, ao chegar mais perto, pôde ouvir seus soluços e viu respingos de leite na pia, Matilde estava tirando seu leite e derramando na pia. Mesmo após esse episódio, Eulálio não se preocupou em saber o que estava acontecendo com a sua esposa, e quando resolveu “pedir explicações” ela já havia desaparecido. Ainda pensava em adultério e chegou a imaginar que ela o traía com seu amigo, o francês, Dubosc. “E pode ser que [...] se sentisse indigna da filha, não ia lhe dar um peito assim todo lambuzado.” (p.159). Por falta de evidências, manteve-se o mistério de seu desaparecimento repentino.

O “leite” foi muito bem trabalhado nesse romance de Chico Buarque, deixando-nos várias interpretações relevantes dentro desse contexto narrativo. Em um certo momento, Eulálio lembrou de sua mãe ao piano – era o único momento em que ela se emocionava. Assim, ele faz a seguinte comparação: “você sempre tem essa nobreza de represar os sentimentos, que certamente lhe doem, como deve doer leite empedrado.” (p.130). O leite, portanto, pode ser interpretado como representante fiel de vida, sentimentos, felicidade – alimento da alma. A mãe de Eulálio era amargurada e triste. Em contraste, temos Matilde, sempre alegre, animada e leve em abundância, “O leite de Matilde era exuberante, agora mesmo ela encheu duas mamadeiras antes de dar o peito à criança.” (p. 85).

Eulálio desconfiou da moral de Matilde mesmo depois de anos do seu desaparecimento. Em diversos momentos a procurou em algum leito com outro homem, agora, Eulálio em um leito de hospital desejava que ela voltasse e, preferia uma mulher adúltera, mas com saúde e alegre. Inclusive fantasiava como Matilde, com sua volta, calaria a voz de seus juízes. O personagem se arrepende do homem mesquinho, machista e egoísta que fora e fantasia o perdão e a aceitação de uma suposta traição. Na verdade, ele queria que ela fosse feliz e que esse homem, se houvesse de fato, fizesse o que ele nunca fez “que se dirigisse a ela com palavras que nunca usei, que tivesse o cuidado de tocar a pele dela onde jamais tocava.” (p.165). Mas já era tarde, e valendo-se da expressão popular, não adiantava “chorar o leite derramado”.

Ainda pode ser interpretado como uma conotação sexual, o desejo de Eulálio por Matilde são constantemente mencionados na narrativa. Desde que a conheceu já demonstra isso e fazia questão de relembrar, mesmo que em um leito de hospital. “E urgia compreender melhor o desejo que me descontrolara, eu nunca havia sentido algo semelhante.” (p.32). Enquanto namoravam, embora “sem contatos de pele, e sem avanços de mãos ou de pernas” ele pensava, paralelamente em como ia disfarçar para seus pais e criados aquele impulso sexual, “o lago quente em minhas coxas [...] minhas calças e cuecas esporradas [...].” (p.46). E mesmo depois que Matilde desaparece, seu desejo por ela continua vivo e presente:
[...] sonhando com ela melei estes lençóis [...] vai restar visível uma mancha úmida no colchão, que tratarei de virar como faço toda manhã, deixando para cima o lado das manchas secas. Terei a sensação de que o colchão pesa mais um pouco a cada dia, e imaginarei que na palha dentro dele, se impregna a pasta dos meus sonhos e atos solitários.” (p.69).
Chico Buarque lançou duas versões para o Leite derramado, uma com capa branca e outra com capa laranja. Entende-se que a versão de capa laranja representa Matilde, essa era sua cor favorita – calorosa, afogueada, fora dos padrões convencionais, exuberante – que despertava o ciúme doentio de Eulálio, a dúvida sobre a traição. “Nem parei pra pensar de onde vinha a minha raiva repentina, só senti que era alaranjada a raiva cega que tive da alegria dela.” (p.12). Enquanto a versão da capa branca representa Eulálio e seu arrependimento – o leite derramado.

O romance contem características típicas da literatura pós-moderna, através da ilinearidade, o narrador-protagonista planeja um futuro através do presente retomando o seu passado. Por diversas vezes, joga com o presente e o passado, intrigando e confundindo o leitor. Seus delírios, conversas em pensamentos, reclamações de tudo a sua volta, repetições de fatos, dificuldade em apresentar os acontecimentos de maneira cronológica configura a metaficção, pois traz realidade, provoca o leitor a entender dessa forma.

A literatura pós-moderna trata desse sujeito fragmentado, com pensamentos e identidades contraditórias e heterogêneas. Eulálio é um homem de cem anos, que está em um leito de hospital, fazendo uso de medicamentos fortíssimos para dor. Portanto, a história, por ele lembrada e contada, carece de linearidade e coerência, tal como seria o seu fluxo de pensamentos. E como que em uma justificativa, ele mesmo diz 
A memória é deveras um pandemônio [...] Não pode é alguém de fora se intrometer [...] como a filha que pretende dispor da minha memória na ordem dela, cronológica, alfabética, ou por assunto. (p.41).
Chico Buarque apresenta, em o Leite derramado, diálogos com outras obras. Trata-se de uma ficção cheia de intertextualidades e baseada na metalinguagem. Quando Eulálio apresenta o cenário histórico desde seu tetravô, quando encontramos diálogos com os textos machadianos e quando percebemos detalhes de obras historiográficas, percebemos que se trata de uma narrativa metaficcional. 

De maneira intimista, o narrador revela seus preconceitos e opiniões sobre as pessoas, fatos e coisas a seu redor. Como em “Aquela que veio me ver, ninguém acredita, é minha filha. Ficou torta assim e destrambelhada por causa do filho.” (p.14). Ora, dificilmente alguém diria isso em qualquer contexto, ou para a própria pessoa de quem se fala. Demonstra, com isso, o que é tão intensificado na literatura contemporânea, o fato de relatar que o sujeito pós-moderno possui esse mistério íntimo, de não dizer o que se pensa, ou dizer de maneira sutil, mascarando a intimidade. Stuart Hall configura esse processo de construção do sujeito pós-moderno relacionando-o a sociedade. Atualmente, não há uma sociedade centralizada, vivemos em uma era diversificada em segmentos sociais, e a identidade do indivíduo contemporâneo reflete exatamente isso, as multifaces presentes em cada indivíduo. Assumem-se identidades diferentes de acordo com cada contexto.

Através de Eulálio é possível perceber, como pano de fundo, uma tendência da elite de uma época, que se comportava de maneira extremamente conservadora, preconceituosa e com a moral, apesar de frágil, construída e conservada pela aparência.

Eulálio proveniente de uma sociedade tradicional, regressista, na qual os indivíduos tendiam a ser centralizados, todos seguiam as mesmas regras culturais, éticas e morais, se encontra ao final de sua vida em uma sociedade completamente diferente. Hall diz 
[...] à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – amo menos temporariamente. (HALL, 2006, p.13)
Há uma busca pela construção de um sujeito, o próprio Eulálio tenta se reconstruir, diante daquilo que lhe restou. Essa necessidade de mostrar quem é, quem fora, a história de seus antepassados e a autoafirmação constitui nessa incessante busca, Eulálio quer resgatar ou mesmo reconstruir um sujeito que, no momento, encontra-se debilitado, decadente, agonizando de dores físicas e psíquicas. Ao relembrar e contar a sua história, Eulálio espera que alguém lhe ouça. O narrador pretende convencer que Matilde a abandonou, apesar de seus argumentos insustentáveis. O próprio nome do protagonista significa “um bom orador”, um contador de histórias; enquanto Matilde, traz a conotação de mulher má. 

A presença da ideia do politicamente incorreto fica escondida atrás do fato de se tratar de uma pessoa idosa. Nota-se que o autor usa disso, para não chocar quando relata o desejo de Eulálio por relações homossexuais com Balbino. Um senhor, doente, relembrando sua vida, soa como graça e não impacto em uma sociedade por vezes preconceituosa. Denotando ainda normalidade em sentir desejos semelhantes. É como se, por ser idoso, Eulálio tivesse a liberdade para reclamar do que quisesse. Provoca, pois é natural que hoje ninguém se importe com as reclamações, ou observações, ou ainda, com a história de vida dos idosos. Ressalta-se também, as repetições de fatos, além de trazer a ficção para mais próximo da realidade, pois é normal um idoso repetir o mesmo assunto, ou a mesma história, vemos também a crítica à impaciência que a juventude de hoje tem para lidar com isso. Por várias vezes, Eulálio se desculpa e justifica o fato de repetir várias vezes a mesma história.

Se outrora, a família de Eulálio possuía fama e riqueza, se seu sobrenome podia ser usado para adquirir vantagens, se bastasse andar por onde seu pai andava, agora já não adiantava nada, é o leite derramado na vida Eulálio. 

O Leite derramado, em 2007, retrata cem anos de Eulálio, trata da história do Brasil. As transformações sociais, econômicas, políticas refletem efetivamente na vida de uma família, e, por consequência, na vida de um indivíduo. A Europa não é mais a mesma, o Brasil não é mais o mesmo. A sociedade não é a mesma de cem anos atrás, refletindo diretamente na formação da família atual. Culminando em construções identitárias individuais. O indivíduo não é mais o mesmo. O livro provoca reflexão de um eu interior, de um eu posterior. Eulálio não é mais o mesmo e não adianta mais “chorar o leite derramado”.


REFERÊNCIAS

BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. 11 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

REVISTA "TRADUZIR-SE"

Está no ar a revista eletrônica Traduzir-se do curso de Letras das Faculdades Integradas Campo-Grandenses. O periódico digital lançou seu primeiro volume no segundo semestre de 2015 e abre espaço para artigos acadêmicos, resenhas e entrevistas. 

Tenho muito orgulho de fazer parte dessa história. Um dia, quando eu estiver bem velhinha, vou poder dizer: A revista Traduzir-se? Eu participei da primeira edição, meu jovem! (rsrsrsrs).

Pude contribuir com um pequeno artigo, produzido através do Projeto de Iniciação Científica, ainda no meu segundo período do Curso de Letras. Já tinha publicado, aqui no blog, um resumo do mesmo (CLIQUE AQUI). 

O título da minha pesquisa é “A Carta do Descobrimento: descortinando a arte e a cultura brasileiras a partir da Carta de Caminha”, orientada pelo Professor Mestre Erivelto da Silva Reis. Esse foi o primeiro artigo do Projeto “Temas e Problemas da Cultura Literária Brasileira”, desenvolvido e apresentado em consonância com as recomendações do Núcleo Docente Estruturante do Curso de Letras (NDE), através do trabalho desenvolvido pelo Núcleo de Estudos da Linguagem Poeta Primitivo Paes (NEL-PPP), e da Coordenadoria de Extensão, Pós-Graduação e Pesquisa (CEPOPE) das Faculdades Integradas Campo-grandenses.

Não deixem de conferir! São diversos assuntos. Estes são alguns dos temas desse primeiro volume:

  • “Cartas de esperança e libertação a correspondência de Alceu Amoroso Lima com Frei Betto e Leonardo Boff” por Leandro Garcia Rodrigues
  • “Frankenstein para jovens: a adaptação a serviço da formação do leitor literário” por Rachel Cristina de Souza e Souza
  • “A inclusão das histórias em quadrinhos na educação brasileira” por Rachel Monnier Ferreira
  • “Ensino de Língua Portuguesa: história, caminhos e mudanças” por Ana de Lourdes do Nascimento Pessoa
  •  “Um estudo sociocognitivo sobre o processamento do texto em notícias populares” por Wagner Alexandre dos Santos Costa
  •  “A Carta do Descobrimento: descortinando a arte e a cultura brasileiras a partir da Carta de Caminha” por Lybia de Oliveira, orientado por Erivelto da S. Reis
  • “A importância da intertextualidade no processo de interpretação em tirinhas da Turma da Mônica” por Wagner Alexandre dos Santos Costa, Joyce Silva dos Santos e Vera Lúcia Gabriel dos Santos

Para acessar a página da revista Traduzir-se CLIQUE AQUI.

Para ler o artigo “A Carta do Descobrimento: descortinando a arte e a cultura brasileiras a partir da Carta de Caminha”, acesse a revista Traduzir-se clicando no link acima ou acesse de forma direta CLICANDO AQUI.

terça-feira, 13 de outubro de 2015

A CRÍTICA PENSANDO O BRASIL: EXALTAÇÃO DA HISTÓRIA NACIONAL ATRAVÉS DE SILVIO ROMERO

Resumo do segundo artigo que discute os "Temas e Problemas da Cultura Literária Brasileira"


O segundo momento do Projeto de Iniciação Científica intitulado "Temas e Problemas da Cultura Literária Brasileira" tem como objetivo apresentar as biobibliografias dos críticos Sílvio Romero, José Veríssimo, Afrânio Coutinho, Antônio Cândido, Alfredo Bosi e Roberto Schwarz, em fases investigatórias distintas, divididas em A Crítica pensando o Brasil; A Crítica pensando as transformações na Arte; A Crítica pensando a Literatura; e A Crítica pensando a Crítica, de acordo com o esquema abaixo:



Segue um breve resumo da pesquisa biobibliográfica relacionada à obra e à trajetória do crítico Silvio Romero, que, segundo o presente estudo, adotou o modelo sociológico, preocupado com a formação da identidade nacional, contribuindo para uma compreensão histórica da cultura literária brasileira. 



Embora já tivessem nas Academias literárias dos séculos XVII e XVIII reflexões a respeito da nossa literatura, é apenas no século XIX que a Crítica literária brasileira se forma. Na época do Romantismo praticamente todos os escritores brasileiros estavam preocupados com a busca de uma identidade nacional e uma independência literária, mas a Crítica literária brasileira só passou a ter mais coesão no período do realismo/naturalismo, pois segundo o autor Assis Brasil, em seu livro Teoria e prática da crítica literária, foi nessa época que “A literatura passa a ser estudada, então, sob o prisma sociológico e sob uma metodologia ‘científica’.” (BRASIL, 1995, p.31).
A figura de Sílvio Romero se destaca nessa época. Portanto, entendemos que uma reflexão sobre a sua vida (origens, pensamentos e trajetória), suas obras e suas formulações teóricas permitirá uma compreensão acerca da sua influência para a literatura nacional.
Sílvio Romero nasceu em 21 de abril de 1851 na cidade de Lagarto em Sergipe. Com 17 anos, cursou a Faculdade de Direto em Recife e, no segundo ano da faculdade, Silvio já atuava na imprensa pernambucana, colaborando com artigos, poesias e críticas. Destacou-se entre os integrantes da Geração de 70 da Escola do Recife e, após se formar, mudou-se para a cidade do Rio de Janeiro. 
Entre 1876 e 1886, Sílvio se dedicaria aos estudos do folclore e da etnologia, fazendo diversas publicações, entre elas, a mais importante “que se tornou referência para os estudos sobre o percurso da atividade literária no Brasil, a História da literatura brasileira, publicada em 1888.” (MOTA, 2000, p.40).
Participou da fundação da Academia Brasileira de Letras em 1897 e ocupou a cadeira do Patrono Hipólito José da Costa. Colaborou ativamente na Revista ABL e fez alguns discursos, entre eles, o de saudação a Euclides da Cunha.
Silvio Romero falece no dia 18 de junho de 1914, aos 63 anos de idade nos deixando cerca de 350 publicações – entre livros, ensaios, discursos, teses, artigos etc. Mais impressionante que a quantidade, são as variedades dos assuntos que abrangem Direito, política, sociologia, economia, filosofia, história, literatura etc. 
Compreender o contexto histórico em que ele estava inserido, bem como a sua formação intelectual, relacionando-as com algumas de suas principais obras nos dá base para discutir a “Crítica pensando o Brasil”. 
Nas últimas décadas do século XIX, o Brasil passou por diversas experiências devido ao crescimento constante da industrialização e da urbanização, principalmente no sudeste. Entre elas, destacam-se: o trabalhador livre e assalariado que foi, aos poucos, substituindo os escravos; a produção de café no Rio de Janeiro maior que a de açúcar no nordeste; a burguesia urbana passou a ser maior que a agrária; a fundação do partido Republicano; produção e a renovação intelectual; as teorias vindas do estrangeiro como o Positivismo, Determinismo e Evolucionismo etc.
Segundo Assis Brasil em seu livro Teoria e prática da crítica literária, “foi exatamente nesse período que a crítica literária brasileira tomou impulso e desenvolveu certa coesão doutrinária.”. (1995, p. 31).
No livro Provocações e debates (Contribuição para o estudo do Brazil Social), Sílvio relata, de forma emocionada, como se deram as transformações entre 1868 e 1878 e demonstra orgulho por ter participado desse período extremamente significativo para a história nacional que transformaram, além de tantas outras coisas, a nossa literatura. 
Desde o começo de sua carreira, publicando artigos e monografias nos jornais recifenses, combateu ao romantismo e ao indianismo. Sob influência das teorias da época, Romero se preocupou em compreender o Brasil e a literatura como um produto do meio, raça e momento histórico. Ele não analisava as obras priorizando a estética, mas a sua contribuição social. 
Para Sílvio, compreender a literatura era sinônimo de compreender o Brasil. Enquanto que no romantismo o índio era visto como figura nacional, na visão realista era o mestiço que representava o brasileiro. É justamente da mistura entre índio, negro, português, meio físico e influências estrangeiras que nascíamos. Ele defendia a ideia de que os escritores deveriam exaltar a nossa identidade e, dessa forma, estruturar uma tradição que resultaria na formação da nacionalidade. 
Em 1888, Sílvio Romero publica uma das obras mais importantes de toda a sua carreira: a História da literatura brasileira.  
José Veríssimo, crítico literário da sua época, a quem tanto combateu, e foi combatido, dedica um capítulo do seu livro Estudos de literatura brasileira (1907) pra falar sobre essa riquíssima obra. Ele a classifica como “o livro mais completo sobre a nossa história literária”. (VERÍSSIMO, 1977, p.111).
Ao falar da Crítica pensando o Brasil, é imprescindível falar do professor Sílvio Romero como representante desse movimento. Desde sua mocidade até seus últimos dia de vida, Romero dedicou-se a interpretar a literatura como peça fundamental da nossa identidade, e das nossas experiências, nacional.

REFERÊNCIAS

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 37 ed. São Paulo: Cultrix, 1994.

BRASIL, Assis. Teoria e prática da crítica literária. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995.

CANDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos,1750-1880. 12 ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul; São Paulo: FAPESP, 2009.

JOÃO DO RIO. O momento literário. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura; Fundação Biblioteca Nacional, 1907. Disponível em:
<http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/Livros_eletronicos/momento_literario.pdf>. Acesso em: 21 de abril de 2015.

MENDONÇA, Carlos Süssekind de. Sílvio Romero, sua formação intelectual, 1851-1880. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938. 114 v. 
Disponível em: <http://www.brasiliana.com.br/obras/silvio-romero-sua-formacao-intelectual-1851-1880>. Acesso em: 19 abr. 2015.

MOTA, Maria Aparecida Rezende. Sílvio Romero: dilemas e combates no Brasil da virada do século XX. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000.

ROMERO, Sílvio. Machado de Assis: estudo comparativo de literatura brasileira. Rio de Janeiro: Laemmert C. Editores, 1897. Disponível em: 
<http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/01615800>. Acesso em: 22 abr. 2015.

ROMERO, Sílvio. Provocações e debates (Contribuição para o estudo do Brazil Social). Porto: Livraria Chardron de Lello Irmão, 1910. Disponível em:
<http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/01616500>. Acesso em: 21 abr. 2015.

ROMERO, Sílvio. Zéverissimações ineptas da crítica: repulsas e desabafos. Porto: Comercio do Porto, 1909. Disponível em: http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/01616600>. Acesso em: 22 abr. 2015.

SCHHNEIDER, Alberto Luiz. Sílvio Romero, hermeneuta do Brasil. São Paulo: Annablume, 2005.

VERÍSSIMO, José. José Veríssimo: teoria, crítica e história literária. Seleção e apresentação de João Alexandre Barbosa. Rio de Janeiro, Livros técnicos e científicos; São Paulo, Ed. Da Universidade de São Paulo, 1997.


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